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A sorte dos outros

por Mónica França Fragoso, em 05.07.20

Era hora de tomar café. Dez e tal a arrastar para as onze e até a Ermelinda, não bem em tom de preguiça - que isso ela não conhecia - mas num ir devagar diferente. Com isso, as chávenas faziam menos barulho nos pires, tudo a ecoar-se mais num tempo comprido.

O Eduardo interrompia o jornal para, do canto,

- É o costume!

Ou

- Olha, olha!

E era isto um som criador de ambiente. O Paulino e o José contágio de lentidão. As costas bem para trás nas costas das cadeiras, as chávenas a subirem e a descerem, a subirem e a desceram num ritmo mal medido, a falta de planos para o dia a alargar ainda mais tudo.

Quando o calor deixa relógios moles e dilui vontades, até coçar pode ser um entretenimento. A Juliana, ao balcão, andava nesse coça que não coça até que decide coçar-se na cabeça. Ao que a Ermelinda se enoja um pouco por dentro e lhe põe o café à frente com a testa um pouco franzida. Do canto, o Eduardo

- Era prender essa gente toda!

E a página do jornal leva com uma sacudidela de zanga. Só a indignação do Eduardo parece ter alguma vida ali no meio daquela gente de se deixar estar. Nisto, a Juliana, pondo a voz num suspiro,

- Já soubeste do José?

A Ermelinda, os olhos estreitos e esquecendo-se da mão direita em cima do metal do balcão,

- O que é que se passa?

O modo como a outra leva a chávena à boca e a faz descer e rodar devagar no pires denuncia o seu calculismo no suspense que cria. Roda a chávena num prazer disso e

- Ainda não sabes?

- Ó mulher, o que é? Diz!

A outra arrasta

- Vai-se embora.

A mão da Ermelinda fica mais presa no balcão com

- Vai-se embora?! Para onde?

- Para o Canadá. Diz que tem trabalho por lá.

Depois de subir e descer as sobrancelhas em jeito de Pois é, a Ermelinda vai lavar chávenas e pires, a cabeça nos que fogem da terra, cada vez mais.

- Não tem outro remédio, coitado.

Parece-lhe que na terra se anda sempre à roda, sempre à roda sem uma solução e que há uma força centrífuga que vai mandando gente para fora, para terras onde há vida. Vê isso no café cada vez mais tão nada, no tempo todo que tem para fazer tão pouco.

- E a mulher?

Entre a água a bater na bacia de alumínio, a Juliana

- A Idalina fica. Fica com os miúdos.

Agora também na realidade da novidade que dera, chega a sentir um arrependimento pequenino pelo certo gozo que teve no suspense que criou. Afinal, a coisa nem é boa. Nem é felicidade nem sorte de ninguém. Pelo menos é isso que cresce no peito dos que ficam. Até porque a partida é mais para quem fica. Quem vai tem a aventura a que apegar-se.

O Eduardo ao canto, o jornal mais quieto, provavelmente nas palavras cruzadas. O José e o Paulino discutem agora o futebol da véspera, sem zangas e quase sem entusiasmo. A Ermelinda puxa o banco de madeira e senta-se atrás do balcão, passa as costas da mão direita a limpar o suor da testa e fica assim, a cabeça ainda fugida para outras terras, a inquietação de o negócio cada vez menos.

- Eu só queria que todos tivessem sorte por aqui. A nossa terra é esta, caramba!

A Juliana é silêncio e olhos na chávena, responde só com um suspiro pesado. O ar do espaço parece arrastar alguma mudança ou decisão que tem de ser tomada, mas que não o é à força de uma teimosia de que partir não é bom, de que antes a sorte de ficar. Demoram-se um pouco nisto, neste peso.

Decidida a acabar com aquilo, a Juliana afasta a chávena e

- Dá-me um raspa.

A Ermelinda levanta-se por uma força que vai buscar para mais um movimento, tira o primeiro raspa da frente, dá-lho. Ficam as duas debruçadas sobre o balcão, sobre o cartão enquanto, mordendo o lábio inferior, a Juliana e uma moeda de dez cêntimos vão limpando a tinta. Aos poucos, ziguezagueia a moeda mais rápido, num crescendo de vontade. Sopra a tinta raspada e, dentes bem à mostra,

- Oh! Dez euros!

A Ermelinda inventa uma pressa qualquer, pega no cartão, levanta-o com a mão direita, as peles do braço caídas, estreita os olhos na ânsia de nitidez e, perante a certeza da confirmação,

- Filha da mãe!

Uma gargalhada de quase todos acorda o dia. A Ermelinda, sem sair um milímetro da posição. O Eduardo deixa o jornal, é a vez dele de franzir os olhos.

Assim, cartão no ar, peles caídas, olhos estreitos perante a sorte da outra. Filha da mãe!

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